17.10.03

O QUE SERIA DA ORIGINALIDADE SE NÃO FOSSEM OS CLICHÉS


Por muito que custe aos criativos publicitários, naturalmente obcecados por tudo o que é original, a publicidade não vive sem uma boa dose de lugares comuns. A reiteração de velhas fórmulas, mensagens e códigos é tão indispensável à comunicação como o seu oposto – a inovação. Sem criatividade, as mensagens gastam-se e cansam. Mas, sem um alto grau de mesmice, ficariam incompreensíveis para os consumidores, cuja cabeça muda muito mais devagar do que nós, publicitários, gostaríamos.

Normalmente, os criativos das agências estão sempre a puxar para o pólo da inovação, enquanto os anunciantes tendem a ser mais conservadores. Qual dos lados tem razão? Os dois, como é óbvio. Como é mais fácil arriscar com o dinheiro dos outros, é normal que as agências queiram ser mais ousadas do que os anunciantes. Aliás, é também para isso, para ajudar as marcas a não ficarem amarradas a um excesso de prudência, que existem agências e criativos.

Mas o dever de qualquer criativo é também perceber por que razão essas velhas fórmulas, mesmo tão surradas e monótonas, continuam a parecer eficazes. Serão mesmo tão poderosas que livrar-se delas é pôr em risco a força da comunicação?

Um caso que sempre me intrigou é o dos anúncios de detergente. Como telespectador, tenho dificuldade em encontrar coisa mais chata do que aqueles apresentadores vestidos de cientista, em "laboratórios" perfeitamente falsos, a anunciar com o ar mais sério do mundo a última revolução tecnológica que, agora sim, vai permitir que as cuecas do seu marido fiquem realmente mais brancas. E no entanto, as multinacionais que pagam por esses anúncios, e também pagam estudos caríssimos para verificar se eles funcionam, não são do género de rasgar dinheiro. Será que não temos remédio senão aceitar que esse tipo de comunicação é eficaz?

Para já, é importante lembrar que quando essas fórmulas começaram a ser usadas, não eram fórmulas. Eram um achado, uma ideia original e forte porque ia fundo na alma do consumidor. Ou, neste caso, da consumidora.

Estamos, por exemplo, nos anos 50. A briga das mulheres pela igualdade acaba de sofrer um retrocesso. Chamadas a ocupar o mercado de trabalho durante a guerra, têm agora que voltar para as tarefas domésticas. Mas, pelo menos, já têm uma consciência muito mais clara do estatuto que podem exigir.

O que os anunciantes de detergentes e produtos afins fazem, nessa altura, é dar a essa consumidora exactamente o estatuto que ela exige. Ela pode já não ser uma profissional fora do lar, mas o trabalho que tem a fazer em casa não é menos importante. Limpeza é coisa séria. Por isso, os produtos de limpeza serão anunciados por homens. E, para mais, cientistas, que além do óbvio prestígio social deixam a mensagem subjacente: o que está em jogo é a saúde da sua família – e a responsabilidade é sua.

Passado tanto tempo, o facto de essa mesma fórmula continuar a ser utilizada no mínimo dá que pensar. A explicação mais cómoda – e, nesse aspecto, mais conformista – é o conservadorismo dos anunciantes. Evidentemente ele existe, e às vezes é responsável por muitas asneiras – mas pode ser simplesmente uma medida de bom senso da parte de quem precisa vender numa sociedade também muito conservadora. Afinal, apesar das revoluções de superfície que vão acontecendo todas as semanas, os papéis sociais mudam muito lentamente. O papel da mulher dentro de casa é um deles. Para algumas marcas, encarnar o que muda nesses papéis é um bom negócio. Para outras, a oportunidade mais à mão pode ser justamente encarnar o que não muda. Esse lado imóvel existe, continua a haver consumidores que se identificam com ele, e assim essa publicidade jurássica – "má", para a quase unanimidade dos publicitários – pode ser eficaz, e portanto boa, do ponto de vista do anunciante.

Para os criativos isso não é boa notícia? Pois não. Mas entender as motivações dos anunciantes, ao invés de simplesmente reagir contra o seu "conservadorismo" com uma indignação que também acaba por ser um cliché, é um primeiro passo indispensável para quem pretenda persuadi-los a ir mais longe. E, depois, sempre resta um consolo: saber que, nas mãos de marcas mais atrevidas, essa comunicação feita de fórmulas e clichés é a matéria prima insubstituível para os melhores spoofs e caricaturas. Campanhas como a da Diesel, por exemplo – que, se conseguem comunicar com tanta força, é por poderem usar como alavanca precisamente essas velhas fórmulas.






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