5.7.04

Poetas e assassinos

É de Rosser Reeves, creio, a famosa distinção entre matadores e poetas. Distinção muito útil no seu tempo, e certamente ainda hoje, para separar os criativos a sério dos que andam nesta actividade à falta de talento para mais.

Poeta, aqui, quer dizer diletante. Para Rosser Reeves, todos os que acreditavam no "soft-sell", na "imagem", na "criatividade" e noutras mariquices, por oposição ao martelar puro e duro da USP mais básica que se pudesse arranjar.

Em Portugal, há relativamente poucos anos, "poeta" era sinónimo de poeta mesmo. Tendo ouvido dizer que nesta profissão podiam ganhar a vida a escrever, muitos literatos, mais ou menos frustrados, vieram para agências. E como ninguém lhes dizia como fazer bons anúncios, entretinham-se a fazer maus poemas.

É claro que hoje isso mudou. Mas para o típico anunciante as agências e os seus criativos continuam a corresponder ao velho estigma: são poetas, artistas, gente sem senso prático e sem tino para os negócios, preocupados apenas em fazer anúncios bonitos – como se isso tivesse qualquer importância.

Vistos desta forma, parece natural que as agências e os seus criativos inspirem tanta desconfiança aos anunciantes. O negócio deles é vender, não patrocinar artistas. E no entanto…

No entanto a única serventia dos criativos publicitários é serem e se comportarem como artistas. Não apenas no sentido óbvio, de dominarem o seu instrumento para criar efeitos intencionais e não sujeitos a uma regra precisa, de aplicação mecânica, mas dependentes de largas doses dessa coisa indefinível chamada talento. Mas num sentido ainda mais radical.

Se, para um artista que se preze, cada vírgula do seu texto, cada notinha da sua partitura é tão importante, é porque têm um sentido de responsabilidade pessoal pelo seu trabalho que poucos publicitários mostram. Embora os seus meios sejam muitas vezes mais escassos, os seus patrocinadores quase sempre mais avaros, a ambição do artista é muito maior.

Qualquer artista a sério pretende, no mínimo, mudar o mundo. Aliás, mudar, não: suprimi-lo, para o trocar por outro, de sua própria invenção. É por isso que, para um artista que se preze, um detalhe de forma aparentemente insignificante pode ser uma questão de vida ou de morte.

Artistas que se prezam não são "poetas"; são matadores. Quando o que está em jogo é tão importante, vai-se até onde for preciso.

Acontece que os publicitários a sério, os Bernbach, os Gossage da vida, também estão nesta actividade para mudar o mundo. Sabem que podem fazê-lo, e fazem-no. Por isso o seu sentido de responsabilidade pelo que criam, a sua integridade, como há uns tempos é moda dizer, também é tão grande.

Os anunciantes não deveriam ter medo desses grandes poetas. Uma marca como veículo da recriação do universo, já pensaram? Mas não é nenhuma quimera: chamem-na Nike, chamem-na Apple, chamem-na Volkswagen, o facto é que elas andam aí.

Sem comentários: