Dando continuidade à publicação das minhas obras completas, aqui reproduzo, para ilustração e recreio do Prof. Carrilho, um artigo que o Diário de Notícias acolheu nas suas páginas em 1 de Outubro de 1999.
Com a aproximação do próximo acto eleitoral, renasce a polémica em torno do marketing político, e, particularmente, acerca da influência da publicidade sobre o voto dos cidadãos.
De todos os lados se faz ouvir uma pergunta angustiada: será correcto tratar os políticos como se fossem sabonetes?
Ora, como quase toda a gente sabe, os políticos não são, efectivamente, sabonetes. Nem tão pouco, aliás, frigoríficos ou automóveis utilitários.
Uma dona de casa não corre um grande risco ao experimentar uma nova marca de detergente, de sumo de fruta ou de iogurte. Se não ficar satisfeita, terá desperdiçado, quando muito, algumas centenas de escudos. Por outro lado, quando um consumidor adquire um produto de maior valor - digamos, um frigorífico, um televisor ou mesmo um automóvel -, já se sabe que estará protegido por uma garantia contra eventuais deficiências de fabrico. Finalmente, existe uma abundante legislação destinada a proteger os consumidores contra a publicidade mentirosa.
Nenhuma dessas circunstâncias ocorre quando os cidadãos votam para escolher os seus representantes políticos: o risco de uma má decisão é elevadíssimo; é impossível corrigi-la antes que decorra um prazo de alguns anos; e, finalmente, não há praticamente limites para o que os candidatos podem dizer e prometer. Na terminologia técnica do marketing, dizemos que se trata de uma decisão de alto envolvimento.
A democracia assenta num paradoxo, mil vezes invocado pelos seus inimigos como argumento contra ela: milhões de cidadãos ignorantes sobre as realidades mais triviais são chamados a pronunciar-se sobre questões da maior profundidade para o destino do país. Perante essa plateia inculta, os políticos discutem com a possível seriedade o estado da balança de pagamentos, as vantagens da moeda única, a oportunidade de aumentar o investimento na investigação, a interrupção voluntária da gravidez, a criação de regiões político-administrativas e por aí fora.
Ora, o mistério é que, embora os cidadãos possam cometer (e efectivamente cometam) muitos erros de julgamento, o sistema funciona, ainda assim, com razoável e tranquilizadora eficácia.
É, então, inevitável perguntar: como é que o assustado cidadão comum, submergido por questões cuja profundidade o transcende, consegue formar um juízo e votar? Porque - note-se bem - o milagre nem é que vote razoavelmente bem, mas que chegue sequer a criar suficiente auto-confiança para ir votar.
O facto é que a generalidade das pessoas, reconhecendo as suas próprias limitações, não se deixa guiar apenas pela sua própria cabeça, antes busca inspiração ou conselho em alguém em quem confie. Antigamente, essa orientação era buscada nos líderes sociais naturais: o padre, o latifundiário, o patrão, o farmacêutico, o médico, o professor, ou o representante local da autoridade. Hoje em dia, os canais de influência política são mais variados e complexos, mas não menos importantes ou menos eficientes. Daí o interminável desfile, nos tempos de antena dos períodos eleitorais, de personalidades representativas das várias áreas da vida social que anunciam o seu apoio a este ou àquela força política.
Hoje como ontem, a grande maioria das pessoas não tem, de facto, opinião própria sobre a maior parte dos assuntos, o que não quer dizer que não possa adoptar a opinião de alguém cuja autoridade respeita.
Todavia, sucede por vezes que as diferenças de programa entre os diversos candidatos não são muito significativas, o que torna ainda mais difícil a escolha do pobre cidadão. Nesses casos, hoje tão frequentes, o que legitimamente preocupa os eleitores é, sobretudo, a capacidade de cada um dos contendores para realizar aquilo que se propõe. Os cidadãos poem-se, então, a prescrutar os mínimos detalhes do comportamento público e privado dos políticos, no intuito de encontrar sinais, por muito ténues, reveladores do que verdadeiramente lhes vai na alma.
Segundo a interpretação aqui proposta, os eleitores comportam-se efectivamente de forma racional, dentro dos limites da informação e da formação restritas de que dispõem.
Chegados a este ponto, estamos finalmente em condições de compreender que importância pode a publicidade ter nas decisões eleitorais. E a verdade nua e crua é que não pode ter muita.
Em primeiro lugar, porque pouco contribui para aumentar a saliência dos candidatos. Durante anos a fio, os líderes políticos são uma presença constante nos noticiários da TV e da rádio, dão entrevistas, participam em debates, discursam em comícios. No total, conseguem centenas de horas de exposição mediática gratuita, durante as quais têm oportunidade de expôr com razoável detalhe os seus pontos de vista. Em comparação, as mensagens publicitárias transmitidas em espaço e tempo comprado são breves e fugidias.
Em segundo lugar, sabemos que a publicidade é relativamente mais eficaz quando tenta convencer as pessoas a alterarem comportamentos ou pontos de vista relativos a assuntos pouco relevantes para a sua vida, tais como que marca de gelatina comprarão hoje ou que cerveja beberão ao almoço. No limite,a publicidade é quase impotente para alterar hábitos arreigados ou crenças essenciais, sejam elas políticas, morais ou religiosas.
Em terceiro lugar, a publicidade também não pode fazer muito pela imagem dos políticos. A razão é óbvia: a mencionada sobre-exposição dos políticos tem como consequência o apertado controlo do público sobre os seus mínimos actos, tiques ou gaffes. Permanentemente acossados pelos jornalistas, os políticos confrontam-se com a impossibilidade prática de simular ser algo que verdadeiramente não são. A longo prazo, a imagem coincide, em larga medida, com a realidade. E a verdade é que a maioria deles se encontra sob os holofotes há muito tempo, há demasiado tempo para que seja possível manter o público iludido sobre algum aspecto essencial do seu carácter.
Significa isso que a publicidade é completamente ineficaz como arma de combate político? Certamente que não.
Pode-se conceber que, em situações de extremo equilíbrio, a publicidade política possa ter suficiente impacto para decidir o resultado de uma eleição por uma pequena margem. Isso pode suceder porque uma parte dos eleitores - precisamente os mais indecisos - definem o seu voto em função do que pensam ser o sentido da vontade geral. Essas pessoas, em quem prevalece a força do conformismo, não suportam a ideia de poderem estar a ir contra a corrente. Ora a publicidade pode contribuir para dar a ideia de que um candidato tem uma popularidade algo superior àquela de que efectivamente desfruta.
Mas a principal força da publicidade política reside, eventualmente, na sua capacidade de mobilizar os militantes e os apoiantes mais activos de uma força política, funcionando como uma espécie de grito de guerra, de toque a reunir que entusiasma as hostes partidárias, ao mesmo tempo que contribui para orientar a propaganda, uniformizar argumentos, polarizar o debate em torno de certos temas.
Que se desiludam, pois, os dirigentes políticos em estado de desespero. Não será na publicidade que encontrarão a droga milagreira capaz de dar um novo alento às suas candidaturas.
Resumindo e concluindo, temos boas e más notícias para os candidatos que, em estado de desespero, buscam na publicidade uma tábua de salvação. A má notícia é que a publicidade não lhes resolverá o problema. A boa notícia é que também não lhes fará muito mal.
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Há 4 anos