27.10.03

Tem um minuto?

Antigamente, o que o marketing disputava era o dinheiro das pessoas. Dinheiro era o bem escasso – e era dele que a publicidade queria separar o cidadão. Hoje, pelo menos nos países ditos desenvolvidos, o bem mais escasso já não é o dinheiro. É o tempo.

Consumir exige tempo – e dá trabalho. Os anunciantes parecem os meus filhos pequenos: estão sempre a tentar chamar a atenção. E tome descontos, pontos para acumular, oportunidades a não perder, cupões a enviar.

Como dar conta de tantas ofertas? Acredito que até ganharia qualquer coisa se juntasse todos os pontos da Vodafone, todos os fascículos do DN, se aderisse já à Oni ou aos 250 planos especiais da PT. Não fazia era mais nada na vida. Por isso, como tantos outros consumidores, vou perdendo essas fantásticas oportunidades.

Tive disso uma aguda percepção quando conheci os bastidores dos concursos promocionais. Nas agências de publicidade "clássica", muitas vezes já havia criado temas para promoções e concursos, mas nunca me preocupara saber o que acontece depois. Até que pela primeira vez fui apresentado a uma empresa que, entre outras coisas, recebia os cupões, organizava os sorteios, distribuía os prémios.

Foi uma revelação. Como consumidor, nunca entrava nessas promoções por achar que a chance de ganhar era mínima. Descobri o contrário. Em muitos casos a chance era para lá de razoável, por falta de concorrentes. Vi viagens à Tailândia serem sorteadas entre dez gatos pingados. Scooters e fins de semana irem para instituições filantrópicas porque ninguém se habilitou.

É claro que, se toda a gente soubesse disso, todos corriam a participar. Certo?

Tenho dúvidas. Não tendo valor estatístico, o único caso que analisei – o meu próprio – faz-me pensar o contrário. Mesmo sabendo como é fácil ganhar concursos, continuei a evitá-los: mesmo a perspectiva de ganhar não valia o tempo investido a concorrer. Já bastam os formulários das Finanças. Só a perspectiva de um cupão inteiro a preencher já me dá arrepios.

É óbvio que o meu caso é só o meu caso. Mas ilustra esse consumidor, cada vez mais típico, que antes quer gastar dinheiro do que o seu escasso tempo livre.

Face a esse consumidor, as empresas terão cada vez menos sucesso se se limitarem a puxá-lo pela manga. É, novamente, como os meus filhos. Se tentam vencer pelo cansaço – a base de tantos planos de meios por aí – só me conseguem irritar. Mas se me tocam algum ponto fraco quando estou desprevenido, acabo por fazer tudo o que querem.

"Desprevenido" é a palavra-chave. Basta desconfiar que alguma coisa vai tirar "um minuto do seu tempo" para o consumidor se pôr em guarda. É o que acontece com aqueles folhetos que nos atulham a caixa de correio: reconhecíveis à distância, vão direitinho para o lixo. Um supermercado inglês fez diferente: o seu dropmail era a carta manuscrita de uma vizinha do bairro a fazer uma queixa. Segundo a carta, certos moradores da zona, já dados a festas até às tantas, iam exceder-se ainda mais se nada fosse feito contra a loja Tesco da vizinhança, que andava com bebidas a preços ridículos. Para provar o seu ponto, a indignada senhora juntava um folheto da loja, e pedia que todos lá fossem protestar contra uma promoção tão contrária à ordem pública.

Com uma ideia assim, quando o consumidor dá por ela, já está fisgado. E sem reclamar.

Ou seja: lá porque não tenho tempo para o seu anúncio, não quer dizer que não tenha tempo para a sua mensagem. Mas quanto menos parecer um anúncio, melhor.

25.10.03

Porque não?

Talvez nunca como hoje na história da humanidade se tenha falado tanto da importância da inovação empresarial como via para o progresso económico e social.

Porém, como muito bem sabem aqueles que trabalham em marketing e publicidade, nem sempre essa retórica se traduz em atitudes práticas. Na verdade, há boas razões para suspeitar que há hoje menos inovação genuina do que no passado.

Um dos problemas com que nos defrontamos é que, embora toda a gente concorde que as ideias são vitais para o sucesso das empresas, ainda ninguém inventou um método satisfatório de vender ideias.

Antes de o criador explicar a sua ideia, ninguém sabe se ela vale alguma coisa. Depois de ter explicado, já não é preciso pagar por ela.

Por isso, uma empresa não pode pagar as ideias uma a uma. Isso pura e simplesmente não é viável, porque não acautela os interesses do inventor.

Para os criadores, a única via aceitável consiste em pagar-se a sua capacidade de ter ideias, e depois exigir-se um fluxo razoavelmente contínuo de resultados. É assim que trabalham as agências quando contratam criativos. E é esse mesmo princípio que aplicam os anunciantes que sabem como tirar partido da sua agência.

Mas como é que alguém prova a sua capacidade de ter ideias? Uma empresa suíça saíu-se recentemente com um conceito interessante: abriu uma loja onde as pessoas podem apresentar um problema e, a troco de um pagamento, trazer de lá um embrulho com 10 possíveis soluções. É claro que a loja, em si mesma, não dá dinheiro; serve só para promover a capacidade da empresa.

Nalebuff e Ayres, dois professores americanos, tiveram uma ideia ainda melhor: montaram um site na internet onde propoem ideias sobre tudo e mais umas botas. Vá ver, quem sabe se não haverá lá algo para si.

23.10.03

Morte anunciada

As novas e ameaçadoras embalagens de cigarros já tiveram até direito a um debate (razoavelmente incompetente, mas isso é normal) na televisão.

A mim o que me fascina neste caso é a teoria da comunicação implícita professada pelos burocratas que conceberam a medida.

Em resumo, eles acham que, num processo de comunicação, o importante é aquilo que a gente quer dizer, e não o que a audiência está predisposta para escutar. Se o dissermos de uma forma suficientemente intrusiva, agressiva e persistente, as pessoas adoptarão naturalmente a nossa posição. Se isso fosse assim, qualquer ideia, por mais abstrusa ou criminosa, poderia ser imposta por via da publicidade; mas, felizmente, não é.

Eles acham que é a publicidade que obriga as pessoas a fumar. Por conseguinte, invertendo a perspectiva, também acham que deverá ser possível usar a publicidade como técnica de lavagem ao cérebro para obrigar as pessoas a deixarem de fumar.

A primeira coisa a notar é que as mensagens inscritas nas embalagens limitam-se a dizer o que todos os fumadores já sabem: o tabaco faz mal à saúde, e eventualmente pode propiciar doenças mortais. (Os textos dizem isto sob uma forma extremista, cientificamente falsa e insustentável.) Assim sendo, o facto de isso ser reafirmado em letras garrafais não afecta em nada o estado mental dos destinatários. Como muito bem disse o advogado Alves Pereira (é meu amigo, mas trata-se de um mero acaso), se os fumadores não alteram o seu comportamento não é porque não queiram, é porque não podem: eles são, tecnicamente falando, viciados.

Talvez se pretenda, então, vencer pela repetição, considerando que porventura a recordação dos malefícios do tabaco no momento em que o fumador puxa do cigarro funcione como um poderoso elemento dissuassor. Mas, das duas uma: ou o fumador se habitua à mensagem e nem a nota (uma vez habituado à sua presença, encara-a como aquilo a que os ingleses chamam wall-paper), e o seu efeito é neutralizado; ou acha-a tão desagradável que começa a usar uma cigarreira para não se sentir violentado por esse show de fealdade agressiva.

A conclusão é, a meu ver, óbvia: esta inovação é uma violência psicológica gratuita contra os fumadores, cujos resultados serão absolutamente nulos. O único lado positivo da iniciativa é poder ser usada pelos publicitários como um exemplo brilhante do que é comunicação incompetente que, por conseguinte, não funciona.

A santa sem cabeça

Na TSF ouço uma reportagem sobre a madona decapitada: uma imagem de Nossa Senhora criada por Soares dos Reis, a pedido uma confraria religiosa do Porto. O artista tomou como modelo "uma mulher portuguesa" (é o que se contava na rádio, como se fosse auto-explicativo; eu tive dificuldade em visualizar a imagem, mas isso não conta para a história).

Os senhores da confraria gostaram muito do trabalho, a não ser por um pormenor: a cara da senhora era demasiado vulgar para ser a mãe de Deus. Vai daí, zás: degolam a santa, mandando substituir a cabeça do escultor famoso pela do santeiro da esquina – uma perfeita cabeça de banco de imagens, convencionalmente celestial e inócua.

Moral da história: não são de hoje as dificuldades entre clientes e criativos. Também não é de hoje que alguns clientes, para melhorar o trabalho, não se lembram de nada melhor do que matar o macaco.

21.10.03

Porque é que é tão cool ser cool?

E o que tem isso a ver com a nossa "overcommunicated society"? Segue uma teoria.

O ideal de beleza feminina do Ocidente já teve como fisionomia a inocência, mais recentemente a entrega desfalecente ou provocadora. Nos últimos anos fixou-se na indiferença.

Aquelas adolescentes que desfilam na passerelle a sua voluptuosa magreza já não têm a boca entreaberta como quem está à beira de um orgasmo. Planam acima ou ao lado de tudo em absoluta catatonia. Nada lhes interessa. Nada as afecta. Podem explodir bombas, rebentar rebeliões como na Nigéria, no início deste ano, elas não estão nem aí. Quando se constata o massacre já embarcaram para Londres, já estão 8500 metros acima de qualquer emoção terrena. Cool.

Os nossos modelos são assim. Donde nós, que imitamos os modelos, também somos assim. E porquê? Porque se não soubermos ser cool, frios, indiferentes, não estaremos preparados para viver num mundo tão saturado de estímulos.

Numa aldeia de África, num bairro pobre da Bahia, no acampamento dos ciganos, ou mesmo, residualmente, em alguns cantos desta nossa Europa do sul, as pessoas são espalhafatosas, riem ou choram alto e na rua, comentam cada acontecimento, respondem com um abraço ou uma praga à chegada de qualquer estranho.

Nas ruas apinhadas do Ocidente desenvolvido nada disso é pensável. O ruído, o espalhafato está todo nos jornais, nas televisões, no "mercado" barulhento e hipersensível. Quanto às pessoas, o bonito é não se espantarem, nunca mostrarem o que sentem, não responderem a provocações. Passam pelos piropos, pelos paparazzi, pelas rivais, pela sandália que se parte diante das TVs do mundo, pelo que dizem as revistas, pelas modas, pelas guerras civis, pelos genocídios, sem nunca piscarem um olho. Isso é que é ser cool.
FUTUROLOGIA. Numa entrevista à Veja, Alvin Toffler prevê que a bigbrotherização do mundo será ainda mais imparável nos próximos anos. A culpada: a câmara digital. Não só governos, mas principalmente as grandes corporações estarão todo o tempo a espreitar-nos. Verão como escolhemos um produto no supermercado, ouvirão as nossas conversas com o empregado de mesa ou com os nossos amigos, tudo para conhecer até ao detalhe os nossos hábitos de consumo. Depois, essas informações serão vendidas a outras empresas, que assim nos conseguirão vender seja o que for.

Quem sou eu para dizer que não será assim. Mas aquilo que até agora se vê não mostra as tais grandes corporações com muito apetite para esse papel de Grande Irmão.

O problema não está nas câmaras digitais. Captar imagens de toda a gente em toda a parte não deve ser de facto muito difícil. A questão é o que fazer depois com tanta informação. Até agora, a passagem de um marketing "de massas" para um marketing mais personalizado tem sido tímida, sujeita a recuos e hesitações. E aqui "personalizado" diz respeito a grandes grupos de consumidores com certas características comuns. Analisar informação realmente individual, recolhida de forma não padronizada, é algo infinitamente mais complexo. Supondo que venha a ser possível, transformar todos esses dados em conhecimento útil para acções concretas de marketing é ainda mais complicado.

Sabe-se lá. Quem seria capaz de prever, há 30 anos, que todos nós teríamos um computador pessoal? Alvin Toffler foi. Mas quando o meu banco continua a me interromper o jantar para vender produtos que acabei de subscrever, ou quando a seguradora me manda 2 newsletters iguais , só porque tenho duas apólices em meu nome, só posso pensar que estamos muito, muito longe desse radicalíssimo marketing one-to-one.

17.10.03

O QUE SERIA DA ORIGINALIDADE SE NÃO FOSSEM OS CLICHÉS


Por muito que custe aos criativos publicitários, naturalmente obcecados por tudo o que é original, a publicidade não vive sem uma boa dose de lugares comuns. A reiteração de velhas fórmulas, mensagens e códigos é tão indispensável à comunicação como o seu oposto – a inovação. Sem criatividade, as mensagens gastam-se e cansam. Mas, sem um alto grau de mesmice, ficariam incompreensíveis para os consumidores, cuja cabeça muda muito mais devagar do que nós, publicitários, gostaríamos.

Normalmente, os criativos das agências estão sempre a puxar para o pólo da inovação, enquanto os anunciantes tendem a ser mais conservadores. Qual dos lados tem razão? Os dois, como é óbvio. Como é mais fácil arriscar com o dinheiro dos outros, é normal que as agências queiram ser mais ousadas do que os anunciantes. Aliás, é também para isso, para ajudar as marcas a não ficarem amarradas a um excesso de prudência, que existem agências e criativos.

Mas o dever de qualquer criativo é também perceber por que razão essas velhas fórmulas, mesmo tão surradas e monótonas, continuam a parecer eficazes. Serão mesmo tão poderosas que livrar-se delas é pôr em risco a força da comunicação?

Um caso que sempre me intrigou é o dos anúncios de detergente. Como telespectador, tenho dificuldade em encontrar coisa mais chata do que aqueles apresentadores vestidos de cientista, em "laboratórios" perfeitamente falsos, a anunciar com o ar mais sério do mundo a última revolução tecnológica que, agora sim, vai permitir que as cuecas do seu marido fiquem realmente mais brancas. E no entanto, as multinacionais que pagam por esses anúncios, e também pagam estudos caríssimos para verificar se eles funcionam, não são do género de rasgar dinheiro. Será que não temos remédio senão aceitar que esse tipo de comunicação é eficaz?

Para já, é importante lembrar que quando essas fórmulas começaram a ser usadas, não eram fórmulas. Eram um achado, uma ideia original e forte porque ia fundo na alma do consumidor. Ou, neste caso, da consumidora.

Estamos, por exemplo, nos anos 50. A briga das mulheres pela igualdade acaba de sofrer um retrocesso. Chamadas a ocupar o mercado de trabalho durante a guerra, têm agora que voltar para as tarefas domésticas. Mas, pelo menos, já têm uma consciência muito mais clara do estatuto que podem exigir.

O que os anunciantes de detergentes e produtos afins fazem, nessa altura, é dar a essa consumidora exactamente o estatuto que ela exige. Ela pode já não ser uma profissional fora do lar, mas o trabalho que tem a fazer em casa não é menos importante. Limpeza é coisa séria. Por isso, os produtos de limpeza serão anunciados por homens. E, para mais, cientistas, que além do óbvio prestígio social deixam a mensagem subjacente: o que está em jogo é a saúde da sua família – e a responsabilidade é sua.

Passado tanto tempo, o facto de essa mesma fórmula continuar a ser utilizada no mínimo dá que pensar. A explicação mais cómoda – e, nesse aspecto, mais conformista – é o conservadorismo dos anunciantes. Evidentemente ele existe, e às vezes é responsável por muitas asneiras – mas pode ser simplesmente uma medida de bom senso da parte de quem precisa vender numa sociedade também muito conservadora. Afinal, apesar das revoluções de superfície que vão acontecendo todas as semanas, os papéis sociais mudam muito lentamente. O papel da mulher dentro de casa é um deles. Para algumas marcas, encarnar o que muda nesses papéis é um bom negócio. Para outras, a oportunidade mais à mão pode ser justamente encarnar o que não muda. Esse lado imóvel existe, continua a haver consumidores que se identificam com ele, e assim essa publicidade jurássica – "má", para a quase unanimidade dos publicitários – pode ser eficaz, e portanto boa, do ponto de vista do anunciante.

Para os criativos isso não é boa notícia? Pois não. Mas entender as motivações dos anunciantes, ao invés de simplesmente reagir contra o seu "conservadorismo" com uma indignação que também acaba por ser um cliché, é um primeiro passo indispensável para quem pretenda persuadi-los a ir mais longe. E, depois, sempre resta um consolo: saber que, nas mãos de marcas mais atrevidas, essa comunicação feita de fórmulas e clichés é a matéria prima insubstituível para os melhores spoofs e caricaturas. Campanhas como a da Diesel, por exemplo – que, se conseguem comunicar com tanta força, é por poderem usar como alavanca precisamente essas velhas fórmulas.






SG Gigante. Li há dias uma entrevista em que um jovem publicitário que muito prezo se referia num tom depreciativo àquilo que chamava «o tempo do Silva Gomes, da Rosalina e do Guerreiro». Noutra altura hei-de escrever para dizer bem da Rosalina Machado e do Américo Guerreiro, mas hoje é mesmo do Silva Gomes que eu quero falar.

A ideia de que o mundo começou ontem é uma característica dos países subdesenvolvidos. Ano sim, ano não, descobre-se outra vez a pólvora e recomeça-se tudo de novo.

Os povos assim sabem, é claro, que têm uma história; mas, como crêem que as dificuldades actuais decorrem dos erros passados, não desconfiam que ela possa ter qualquer relevância para a resolução dos seus actuais problemas. A história é para esquecer, porque não passa de um repositório de experiências falhadas.

Entre nós, os profissionais do marketing e da publicidade sofrem de uma variante aguda deste mal. Por ignorância ou imperativo de afirmação, cada geração julga que descobriu a verdade e, por isso, acha-se no direito, senão no dever, de ignorar o trabalho das anteriores.

Dir-se-ia que, como cada um é livre de ter as opiniões que entender, trata-se apenas de uma questão de gosto pessoal. Se assim fosse, eu não perderia tempo com este assunto. Mas não é: quem ignora o que se fez no passado está condenado não só a repetir os seus erros como ainda a ter que dispender inutilmente tempo e energias a reinventar a roda.

Uma profissão é, mais do que um conjunto de pessoas, um património de ideias e experiências pacientemente acumulado ao longo do tempo. Por isso, uma profissão de gente que desconhece a sua história e que não venera os seus pioneiros é uma profissão de gente pouco competente, e, sobre isso, pouco estimável.

Vêm estas reflexões a propósito de António Silva Gomes ter lançado ontem um livro de recordações sobre a sua vida na publicidade. Como ainda não li o livro, não posso falar sobre o conteúdo, mas estou desde já certo de que, ao contribuir para preservar a memória colectiva de uma época, ele presta mais um inestimável serviço a todos os que trabalham nesta área.

Os ignorantes de hoje acham que isso nada interessa, porque a publicidade que então se fazia lhes parece ridícula. Eles não perceberam ainda que, vista a vinte ou mesmo dez anos de distância, quase toda a publicidade é ridícula, e aquela que ainda não o é, há-de sê-lo. Porque, não tendo a publicidade a capacidade de distanciação em relação à realidade que distingue a grande arte, ela tende a ficar prisioneira de modismos que se desvalorizam com extraordinária rapidez.

A humanidade é sempre ridícula, mas só se apercebe disso quando consegue ver-se à distância.

Do que a publicidade precisa cada vez mais é de gente com espessura, como o Silva Gomes é, não de cromos que ficam bem no retrato. Numa era em que muitos famosos se revelam perfeitas nulidades quando os conhecemos de perto, é bom haver gente como ele que é melhor quando nos aproximamos.

PS – Relendo o que escrevi constato que acabei por falar pouco do Silva Gomes, certamente menos do que ele merece. Há-de haver mais ocasiões.

16.10.03

Quando fui ver o correio, que emoção. Uma carta do Scolari! E era para mim!

Depois que me refiz, vieram as perguntas. O que é que ele queria de mim, exactamente? Ou, falando em marquetês, qual era o resultado esperado daquela acção de comunicação? E, supondo que havia um resultado esperado, como é que se teria a certeza de que fora atingido? Ou ainda: como controlar que esse investimento tinha dado retorno?

Tudo isso seria mera especulação de um publicitário que por acaso também pertence ao público alvo, como tantas vezes acontece, a não ser por um pequeno detalhe. É que, até onde consegui perceber, quem pagou a simpática cartinha do Scolari não foi o Scolari. Fui eu.

Só depois de receber a carta é que vi o filme correspondente. O filme está engraçado, foi o principal comentário que ouvi dos publicitários com quem falei. Eu concordo. O que não acho nada engraçado é pensar que o dinheiro do contribuinte é usado para acções sem um propósito específico. Acções que servem mais aos objectivos políticos de alguém do que ao interesse de todos.

No Público de ontem (15.10), Joaquim Fidalgo indignava-se com uma campanha que convida a "humilhar o melhor amigo" e "assistir a uma boa tareia". É não perceber nada de nada. Não digo não perceber nada de anúncios (nem quero entrar aqui no mérito da campanha). Digo não perceber nada de nada: da natureza humana, do que move as pessoas, da diferença entre jogo e realidade e da importância de haver essa diferença.
O que seria do futebol, do boxe, do bridge, se as pessoas não gostassem de assistir a uma boa tareia? Que seca seria se a selecção nacional, quando entra em campo, não quisesse eliminar o adversário, dar-lhe uma boa tareia, humilhá-lo em público com gols e jogadas que o pusessem em prantos. No final, todos trocam as camisolas, apertam a mão, a vida continua. Mas, até lá, a ideia é mesmo dar cabo deles.
Não é só que não haja mal nenhum: tem mesmo que ser assim. Essa tem sido a forma que a humanidade encontrou, desde que o mundo é mundo, para lidar melhor com os seus desejos mais intratáveis. Enquanto tento dar cabo do adversário com um taco de golfe, não estou a fazê-lo com uma granada. Enquanto estou a metralhar meia dúzia de inimigos na minha Playstation (ou no telemóvel, para voltar aos anúncios), não estou a fazê-lo na vida real. Isso, sim, faz toda a diferença.
O politicamente correcto que permeia o artigo lembra-me que em Portugal há muito medo de "brincar com coisas sérias". Perdi a conta de quantos bons anúncios já vi serem chumbados por isso. O humor, dizem esses anunciantes, é muito perigoso.

Ora, eu não acho. Não é perigoso gostar descomplexadamente de dar uma boa tareia num jogo de telemóvel. Perigoso é ter tanto medo dos impulsos, bons ou maus, que todos temos cá dentro, que nem se consegue brincar com eles. Levados tão a sério, é claro que são asssustadores.

Sr Fidalgo, descontraia-se. O humor não é perigoso. O mau humor é que é.

15.10.03




Marketing politico. Nicolas Rolin, representado nesta pintura de Van Eyck numa atitude de veneração à Virgem, dedicou quase sessenta anos (dos oitenta e um que teve de vida) ao serviço dos Duques da Borgonha. Durante os primeiros vinte foi seu conselheiro legal, sendo em seguida promovido a chanceler, uma espécie de superministro que acumulava as funções de ministro das finanças, ministro da administração interna e ministro dos negócios estrangeiros.

O seu senhor Filipe o Bom, Duque da Borgonha e Grão-Duque de Occident, embora nominalmente vassalo de Carlos VII, Rei de França, era de facto muito mais rico e poderoso do que ele.

Rolin, oriundo de uma família modesta de Autun, conseguiu usar o seu poder para acumular uma considerável fortuna. Era considerado um homem enérgico, autoritário e implacável. Os seus inimigos denunciavam os seus métodos políticos e criticavam-no por se ter aproveitado dos cargos que ocupava para enriquecer.

Como muitos outros novos ricos, Rolin compreendeu que o prestígio da arte pode ajudar a nobilitar uma carreira recheada de espisódios pouco dignificantes. Contratou então o grande pintor Van Eyck para executar esta homenagem à Virgem.

É no entanto evidente que a homenagem à Virgem é também uma homenagem ao próprio Rolin. Apesar da atitude de recolhimento adoptada pelo chanceler, o facto de ele se exibir no mesmo plano que a Mãe de Deus não deixa de exprimir uma certa ousadia. Na pintura medieval era normal a dimensão das personagens representadas depender da sua importância. Aqui, porém, insinua-se de uma relação de alguma igualdade entre as duas figuras representadas, envergando as suas melhores vestes, num ambiente muito palaciano e pouco divino.

Esta pintura encerra uma variedade de significados para os contemporâneos que eram chamados a contemplá-la. Uma parte desses significados são marcadamente políticos. Em primeiro lugar, trata-se de uma manifestação óbvia de poder, desde logo porque não era qualquer um que podia dar-se ao luxo de contratar um dos melhores pintores da época, mas também pelo facto de o quadro figurar a Virgem admitindo no seu convívio o chanceler. Em segundo lugar, há uma sugestão de intimidade que visa insinuar uma comunhão de propósitos: Rolin está ao serviço de Deus através da sua Mãe, de quem recebe directamente inspiração e ordens. Pretende-se assim legitimar a actuação política do ministro do Duque.

Esta obra de arte é também, por conseguinte, uma peça de marketing político com mais de seis séculos de existência, uma constatação talvez chocante para uma época como a nossa que às vezes parece julgar ter inventado tudo o que hoje existe.

Naturalmente, hoje em dia nenhum político teria o descaramento de procurar comprometer directamente Nossa Senhora com o programa do seu partido, porque isso cairia muito mal no eleitorado. O que prova que, afinal, sempre há algum progresso na história da humanidade.

14.10.03

Peripécias da globalização. Vi ontem um spot publicitário anunciando uma marca chamada "Loctite" (pronunciado mesmo assim). Mas acontece que nós em Portugal, ao contrário dos espanhóis, pronunciamos "Loctaite", de modo que é como se, por via de uma tradução feita no país vizinho, tivesse aparecido no mercado uma nova marca de colas.

Irá isto prejudicar as vendas da marca? Se calhar, não. Mas, entretanto, vamos dar todos uma boa gargalhada à custa da "Loctaite"!

12.10.03

Como são percebidas as agências. Quando um publicitário se mistura com os paisanos tem a oportunidade de aprender algumas coisas interessantes.

A mais importante e grave delas é que, hoje em dia, muitos anunciantes, desconfio que a maioria, não considera que a publicidade seja essencial para o sucesso das suas marcas.

Ao mesmo tempo, permanecem aferrados a preconceitos segundo os quais os publicitários seriam criaturas caprichosas, pouco profissionais e excessivamente bem pagas. São ideias erradas mas perigosas, porque agravam o problema principal mencionado no parágrafo anterior.

Os anunciantes confiam pouco na capacidade de elaboração estratégica das agências, por isso recorrem cada vez mais a consultores para analisarem a situação das marcas e planearem o seu desenvolvimento. Estes consultores são escutados pelas administrações, ao passo que as agências nem sempre conseguem dialogar sequer ao nível do Director de Marketing.

Às agências pede-se-lhes apenas que desenvolvam campanhas susceptíveis de gerar um elevado day-after-recall, ou seja, que logrem uma elevada visibilidade pública, que chamem a atenção para si próprias. A criatividade pretendida não tem que assentar em ideias estratégicas sólidas, mas apenas em graças ou gimmicks susceptíveis de prenderem a atenção do público.

A publicidade pode não ser vital para o negócio, mas é crucial para o sucesso profisisonal do Director de Marketing pela exposição pública que lhe proporciona. Este facto condiciona a selecção de uma agência e o processo de aprovação das campanhas.

Pessoalmente, considero injustas as percepções dominantes entre os anunciantes, mas não tenho dúvidas de que não podem ser ignoradas.

O problema é que, hoje em dia, não é claro para o mercado qual é o know-how específico das agências: o que é que elas sabem que os outros não sabem? Acredito que esse conhecimento existe e, pelo que tenho visto, estou certo de que as consultoras não o têm.

Não basta, porém afirmá-lo nestes termos. É preciso mostrá-lo e demonstrá-lo, pois ninguém está disposto a pagar aquilo que não vê.

Prometo voltar a este assunto.

8.10.03

Como é que eu sei? David Ogilvy tinha uma pergunta favorita que invariavelmente dirigia a alguém que lhe parecia afirmar mais do que estava em condições de justificar: «How do you know?» («Como é que sabes?»). O efeito desta interrogação é invariavelmente miraculoso: mais frequentemente do que seria de esperar, as pessoas não sabem do falam.

Para me proteger contra o mesmo mal, habituei-me a perguntar a mim próprio, cada vez que receio começar a descarrilar: «How do I know?». E não é que, muitas vezes, não sei mesmo?

6.10.03

Sexo, mentiras e publicidade. A publicidade é às vezes vítima dos mitos que ela própria ajuda a criar.

Assim, os leigos estão tão convencidos de que os apelos de carácter sexual ajudam a vender quaisquer tipo de artigos, e que os publicitários se valem disso para seduzir o público, que a União Europeia resolveu começar a estudar legislação destina a controlar a publicidade sexualmente agressiva.

Já todos sabemos que o sexo só deve ser usado quando for relevante para o terreno simbólico dos produtos ou marcas a promover. Mas o que eu agora gostaria de sublinhar é que, dentre todas as manifestações da cultura popular contemporânea (incluindo cinema, televisão, música, teatro, banda desenhada, literatura, fotografia, etc.), a publicidade é, sem qualquer dúvida, a mais conservadora no que à abordagem do sexo respeita.

3.10.03

Ciência, técnica ou arte? O marketing não é, obviamente, uma ciência. Não se pode todavia deduzir daí que nos encontramos no domínio da total subjectividade. Há muitas coisas que sabemos com um razoável grau de certeza; mas, sobretudo, sabemos que algumas coisas são impossíveis. Por exemplo, sabemos de ciência certa que não é possível reposicionar uma marca ao sabor dos nossos caprichos. Sabemos também que não está no poder da publicidade revolucionar as crenças e as atitudes profundas dos consumidores.

Quando digo que sabemos, seria talvez mais prudente dizer: algumas pessoas sabem, dado que não é isso que se propaga em inúmeros livros e cursos de marketing. Um exemplo: segundo os jornais, durante a campanha autárquica de 2001, Santana Lopes teria afirmado: «Vou tornar chique andar de transportes públicos». Para o público em geral, esta sentença atesta o génio de marketing do actual Presidente da Câmara de Lisboa; para quem tem algumas luzes sobre o assunto, prova que, independentemente dos seus outros méritos, ele não é um conhecedor da matéria.

Mas é um facto que o grande público, impressionado por mitos como o da publicidade subliminar, tende a crer que o marketing tem poderes ilimitados; e também é verdade que muitos profissionais de marketing também acreditam nisso. Se assim não fosse, como explicar a frequência com que fixam objectivos impossíveis de realizar, tais como recorrer à publicidade para «expandir a procura global da categoria», «dessazonalizar as vendas» ou «modificar a preferência de marca»? Aposto, aliás, que muitos pessoas estranharão esta lista, dado que também eles pensariam tratar-se de propósitos eminentemente respeitáveis e realistas.

Acontece, porém, que o pouco que sabemos sobre o comportamento dos consumidores sugere o contrário.

2.10.03

Maria João Freitas. A Maria João Freitas, uma das pessoas mais cultas que conheci na publicidade, escreve todas as semanas na Pública (a mulher do Público, não sei se conhecem) artigos maravilhosos sobre esta «arte comercial» que marcou indelevelmente a cultura popular do século XX.

Neles, a Maria João privilegia sobretudo a dimensão envolvente, fantasista e estética da publicidade, o que é perfeitamente compreensível quando se escreve para uma audiência não profissional.

Embora eu acredite que muito equívocos podem ocorrer quando a publicidade deixa de ser entendida como uma ferramenta de marketing e passa a ser considerada uma forma de arte, concordo que os publicitários também têm a obrigação ética de deixar o mundo um pouco mais bonito do que o encontraram.

Que mal poderá haver se, para além de impulsionarmos as vendas de uma marca, aproveitarmos de passagem para promover o bom gosto?