O assunto dos pedintes é interessante, porque de facto permite, se visto devagarinho, compreender algumas das nossas motivações de compra.
E digo motivações "de compra" sem intenção de analogia. Como ao que parece não há almoços grátis, o pedinte, quando pede, dá necessariamente algo em troca, mesmo que não tenha consciência disso (mas duvido que a maior parte não a tenha, pelo menos de forma intuitiva; ser pedinte, pelo menos nos moldes desses que andam no metro, diariamente e a horários certos, é uma profissão como as outras, com o seu código de conduta, as suas relações corporativas e o seu know how, fruto dos ensaios, erros e intercâmbio de gerações de praticantes).
E o que é que o pedinte dá em troca do que pede? Ora, aí é que está o savoir faire. Alguns limitam-se a proporcionar, por cada esmola recebida, um "Deus lhe pague" – e a moeda de Deus, como se sabe, é o paraíso. A salvação, a remissão das culpas, que todos nós, em graus variados, carregamos cá dentro desde o pai Adão. Sendo esse o caso, ou seja, um clássico "problema-solução", a forma mais fácil de promover a mercadoria é acentuar o problema, ou seja, fazer com que o target se sinta tão culpado que se torne absolutamente urgente buscar alívio, depositando imediatamente a sua coroa na ranhura. Esta é de longe a abordagem mais popular, cada qual se valendo, para a pôr em prática, das mazelas que tem ou for capaz de inventar.
Por ser tão repetida, no entanto, é óbvio que esta é uma técnica de vendas que atinge rapidamente a saturação. Para uma criança, ou para nós próprios de visita a um país mais miserável que o nosso, o primeiro mendigo é uma experiência chocante. Mas a maior parte de nós tem um rápido reflexo de dessensibilização: o terceiro pedinte ainda incomoda um pouco, o quarto já se tornou invisível. Mesmo numa carruagem de metro em movimento, de onde em princípio não podemos fugir, há sempre um jornal para escondermos a cara. O que fica ainda mais fácil quando, a seguir a um cego que escande com a bengala o "Tenha a bondade de me auxiliar", o que aparece é outro cego de bengala a dizer, exactamente no mesmo tom, exactmente a mesma coisa.
Diferenciar é aqui tão importante como em qualquer situação de comunicação. Comunicar "under the radar", furar a carapaça do público alvo, vale para os pedintes como para os vendentes. Alguns tentam fazê-lo na forma, sem mexer no produto. Outros, e não é de hoje, alteram a própria mercadoria. Em vez de simples alívio para a culpa, têm uma oferta mais complexa, mais parecida com uma venda em sentido convencional. São os que, como a célebre Dona Rosa, têm algum talento a oferecer em troca da moeda. Ou os que, não tendo nenhum, agem como se o tivessem, tocando, mesmo muito mal, algum arremedo de instrumento.
O que essa estratégia às vezes consegue não é só chamar mais atenção, por ser menos repetitiva. Também alarga o target, apelando a pessoas que, por diversas razões (objecções morais, ou por não gostarem de se sentir manipuladas, por exemplo), não dão esmolas – mas são capazes de comprar a Cais, ou de recompensar quem realmente as entretenha, ou pelo menos se esforce para isso.
Não sei se o pedinte/músico de que fala o Quase em Português é o mesmo que eu já vi no metro, às 9 e tal da manhã, na linha Azul. O que eu vi era um virtuose da bengala e da voz, e a sua performance decididamente interessante. Não sei se a sua facturação diária é maior ou menor que a dos outros. Sei que eu pus o jornal no colo e lhe dei um euro.