14.8.06

A publicidade segundo Nabokov

E quando o publicitário de férias pensava finalmente poder ler outras coisas...

“Tudo quanto viesse numa caixa chata de cartão com uma tampa ilustrada era de mau agouro (…) Uma família, sentada a uma mesa redonda iluminada por um candeeiro: o rapaz veste um incrível fato à marinheiro com uma gravata vermelha, a rapariga está de botinas de cordões, também vermelhas; ambos, com expressões de deleite sensual, enfiam contas de várias cores em varinhas que parecem palhas, fazendo cestinhos, gaiolas e caixas; e, com um entusiasmo semelhante, os pais meio imbecis participam no mesmo passatempo – o pai, de barba magnífica na sua cara satisfeita, a mãe de peito imponente; o cão olha também para a mesa, e pode ver-se a avó escondida ao fundo. Estas mesmas crianças hoje são adultas e cruzo-me com elas em painéis publicitários; ele, com as suas faces lustrosas e untuosamente bronzeadas, chupa voluptuosamente num cigarro ou tem na mão musculosa, com um esgar carnívoro, uma sanduíche que contém qualquer coisa vermelha (“Comei mais carne!”); ela sorri-se para uma meia que ela própria usa, ou, com um prazer depravado, deita natas artificiais sobre frutas enlatadas; e com o tempo tornar-se-ão uns velhos alegres, rosados, gulosos – e têm ainda a negra beleza infernal de caixões de carvalho numa montra decorada com palmeiras… Assim se desenvolve paralelamente a nós um mundo de elegantes demónios, numa relação alegremente sinistra com a nossa existência quotidiana; mas no demónio elegante existe sempre uma falha secreta, uma verruga vergonhosa no traseiro do simulacro da perfeição: o fascinante glutão do anúncio, a empanturrar-se de gelatina, nunca poderá conhecer os calmos prazeres do gourmet, e as suas modas (que se atrasam no painel, ao passo que nós avançamos) estão sempre um tudo nada atrás da vida real. Um dia voltarei à discussão desta nemesis que encontra um ponto fraco para bater precisamente onde todo o instinto e poder da criatura agredida parecem residir.”

Vladimir Nabokov, O dom, trad. de Carlos Leite. Lisboa, Assírio e Alvim, 2004,
págs. 23/24

1 comentário:

Gabriela Monnerat disse...

será que verás este comentário?...será?um solto, no nada. mas decidi por esse por talvez achar o mais humanos de inicio que os outros. escolhi por vontade. mas escrevo, torta e nova, escrevo. e isso hoje mudou, por motivos. se queres me ler, ler o que eu acho que sou ou me transformei.(nossa como isso na escrita pode parecer feroz, nao e nada disso. mesmo.)é mais puro e sincero

mas.........

www.transcende.blogspot.com

ainda nao te conheci.