Aqui fica o artigo que publiquei no último número da Alice (Revista do Clube dos Criativos dirigida pela Maria João Freitas).
Durante quase meio século, os publicitários presumiram que os consumidores só tinham existência real sentados no sofá em frente do televisor. Ocasionalmente, admitia-se que poderiam fazer aparições breves junto a uma página de jornal ou a um aparelho de rádio, mas isso era tudo.
Agora, à medida que se reduzem e fragmentam as audiências, começámos a descobrir que, muito provavelmente, os consumidores estão em toda a parte menos aí. Querem uma prova? Segundo a Marktest, apenas um em cada três portugueses assistiu ao último Portugal – Espanha, um jogo que supostamente "toda a gente viu".
Estes factos simples da vida actual encerram enormes consequências para a comunicação de marketing, que no entanto muitos persistem em querer ignorar.
A principal delas é a morte do público. Um público é um grupo de pessoas agregadas em torno de um medium, seja ele a missa de Domingo ou o telejornal das oito. Fora dessa circunstância não existe um público, mas sim pessoas que andam à sua vida, mergulhadas em mil e uma ocupações.
Quando as audiências se fragmentam, como tem vindo a acontecer, conceitos que foram úteis para lidar com massas, (ou com partes significativas dessas massas, a que chamamos segmentos) começam a perder o pé.
A desmassificação das sociedades avançadas teve como consequência, num primeiro momento, o individualismo extremo nos gostos e nos estilos de vida. Mas a angústia resultante desse isolamento repugna à espécie humana e incita-a a reconstruir laços sociais de outro tipo.
Assim surgiram as tribos modernas: flexíveis, efémeras e móveis, uma realidade intermédia entre os grandes grupos sociais homogéneos e o indivíduo isolado despido de compromissos sociais. As tribos não são, como se julga, coisa de garotos, nova versão mais sofisticada dos gangs urbanos: a tribo é hoje a forma dominante de organização social em todos os estratos sociais e classes etárias.
As variáveis sócio-demográficas são na prática inúteis para caracterizar as tribos. O que as une é uma cultura comum, definida por modos de vida e interesses flutuantes e instáveis.
O fenómeno da Lomografia ilustra perfeitamente as novas realidades com que temos que aprender a conviver. Lomo significa Leningradskoye Optiko-Mekhanicheskoye Ob’edinyeniye, designação que denuncia imediatamente a sua origem russa. A Lomo é uma pequena câmera fotográfica de tecnologia rudimentar – não é preciso focar, regular a luminosidade, usar flash ou espreitar pelo visor. Do ponto de vista estritamente técnico, não há nada de especial que a recomende.
Em 1991, o estudante austríaco Matthias Fiegl descobriu uma velha câmera metálica russa em Praga e trouxe-a consigo para Viena. Fiegl achou piada às imagens desfocadas, distorcidas, abstractas e surpreendentes que obteve e transmitiu o seu novo vício a alguns amigos. Nascera a Lomografia.
Aquilo que começara como uma brincadeira de salão tornou-se num movimento tribal que contaminou toda a Europa. Fiegl e o seu amigo Stranzinger afixaram as novas imagens no placard da cozinha e chamaram-lhe LomoWall. Fundaram a Sociedade Lomográfica. Trouxeram mais Lomos da Europa Oriental e, assim que o grupo atingiu as 100 pessoas, organizaram a primeira exposição em Viena.
No início do século XXI, mais de 500 mil pessoas, incluindo as estrelas de rock David Byrne, Laurie Anderson, Moby e Brian Eno, possuíam o objecto de culto. Os pregadores mais entusiastas foram designados Embaixadores Lomo, assegurando a presença da marca em países tão distantes como Cuba ou o Japão. O primeiro Congresso Lomo teve lugar em 1998 em Madrid, onde foi instalado um LomoWall com 108 metros de comprimento exibindo 15 mil imagens. Simultaneamente, na Alemanha Ocidental, um Lomobil percorria o país expondo fotos e alugando Lomos aos curiosos.
Se quisermos entender este movimento, é melhor procurar evitar palavras como mercado ou público. É um facto que se trata essencialmente de pessoas jovens, mas o que melhor as caracteriza é uma forma de encarar e fazer fotografia que as distingue do vulgar cidadão que vai buscar a sua câmera para captar imagens do aniversário do rebento ou das férias no Nordeste brasileiro.
A fotografia não serve, para eles, o propósito de fixar a memória familiar, mas o de se exprimirem de uma forma original. A Lomo é parte integrante de um movimento cultural internacional muito vasto, fora do qual não faz qualquer sentido.
Vivemos, desde o Bauhaus, numa época em que a arte fugiu dos museus e se misturou com a vida. Milhões de jovens em todo o mundo procuram dar largas de uma forma criativa à sua capacidade de auto-expressão, e a Lomo ajuda-os a fazer isso mesmo, estimulando-os a confiarem nas suas capacidades inventivas e colocando-os em contacto uns com os outros.
A Lomografia é um novo estilo de experimentação fotográfica que se distingue tanto pelo modo como as fotos são tiradas, como pelo modo como são combinadas e expostas. O propósito é tirar o maior número possível de fotos nas situações e com os ângulos mais invulgares. Obtém-se assim um fluxo de imagens super-coloridas, demenciais, invulgares e originais, que depois são associadas e expostas em painéis gigantes, cuja diversidade e fulgor fascinam os espectadores. É vulgar juntarem-se num mesmo painel dezenas de milhar de instantâneos.
Leave them all behind: a Lomo encoraja as pessoas a darem largas à sua imaginação, a explorarem novas possibilidades, a buscarem formas não convencionais não só de fotografar como de se relacionarem com outras pessoas com a mesma paixão pelas imagens e pela exploração das suas possibilidades.
Don’t think, just shoot: sejam rápidos e espontâneos, diz-lhes a Lomo, não pensem, não planeiem, não calculem, explorem o ambiente urbano em que vivem nas suas múltiplas dimensões, aprendam a olhar as coisas de outras formas, treinem-se a ser originais, absorvam as imagens que vos rodeiam, misturem-se com o ambiente humano, deixem-se arrastar pelo turbilhão comunicativo dos nossos dias, desprezem as fronteiras, partilhem os vossos entusiasmos com gente que vive do outro lado do planeta.
A Lomo é, por conseguinte, um programa de vida que atrai muita gente em muitos locais separados por dezenas de milhares de quilómetros. É um fenómeno típico do mundo globalizado e da internacional juvenil que, através de meios de comunicação móveis e interactivos, comunica e coopera livremente sem os condicionalismos da distância e das fronteiras. A Lomo tornou-se numa marca ícone da contemporaneidade através de uma combinação sábia, perversa e irónica de hi-tec e low-tec, de sofisticação e inocência. Lomo é um jogo, é um movimento artístico internacional, é um apelo à subversão permanente de modos de vida vetustos e cinzentos.
Os programas europeus de intercâmbio de estudantes universitários favoreceram a difusão original da Lomografia da Áustria para os restantes programas europeus. Hoje, porém, a conectividade potenciada pela net é o principal factor de alargamento do círculo dos seus fãs. O sucesso planetário da Lomografia através de métodos relativamente artesanais não teria sido possível sem o word-of-mouth potenciado pelas novas tecnologias.
A Sociedade Internacional de Lomografia é uma comunidade de meio milhão de pessoas que, por sua vez, integra e anima dezenas de outras sub-comunidades particulares, organizadas por nacionalidades ou tipos de interesses, cada uma das quais com vida e iniciativas próprias. A compra de uma máquina Lomo é um bilhete de entrada para a Sociedade Internacional de Lomografia, que confere ao novo membro o direito de participar nas múltiplas iniciativas da comunidade: propor fotos para publicação online, participar no jornal online, estar presente em eventos e festas diversos.
A posse da câmera Lomo funciona ela própria como um sinal de identidade: quando dois desconhecidos que se cruzam na rua notam que ambos trazem uma Lomo, é certo e sabido que pararão para conversar um com o outro.
A comercialização e distribuição das máquinas assume um carácter voluntariamente amador, no sentido de ser conduzida por pessoas que não estão ali apenas para ganhar dinheiro, mas porque genuinamente se envolveram com o fascínio do movimento. São os Embaixadores Lomo, cuja principal função é dinamizar as comunidades de utilizadores e apoiar as suas iniciativas. Deliberadamente, as câmeras não se encontram à venda nas habituais lojas de artigos fotográficas, para acentuar o facto de que a Lomo não está em concorrência com a Canon, a Olympus ou a Kodak. A Lomo é outra coisa, algo bem mais precioso que não pode ser confiado a meros comerciantes.
O principal site do movimento (www.lomography.com), para além de uma zona destinada a expor e vender os produtos, convida os visitantes a envolverem-se de diversos modos. O site integra uma gigantesca base de dados, o World Archive (shoot, upload, share), onde qualquer pessoa pode expor os seus trabalhos. O projecto Lomo Homes permite pesquisar a partir de um mapa fotos de todas as cidades mundiais onde existem Embaixadores Lomo. Quem o desejar, pode ainda participar na Missão do Lomo do mês e apresentar os seus trabalhos em função de um brief proposto pela marca. Eis o brief de Julho de 2004, cujo sugestivo título é Full Throttle (A todo o gás): Head into the blazing days of sweaty summer (or freezing winter for those down under) and steel your eyes for mind-numbingly fast motorcycles, muscle cars, acrobats, screaming babies, drunken ranting, and all other kinds of intense heart-pounding white-knuckle action).
O que podemos aprender com este fenómeno? Muita coisa, creio eu. Em primeiro lugar, a comunicação de marketing não nos aparece aqui como algo distinto do "produto" ele próprio: parte substancial do apelo da Lomografia é exactamente o facto de nos pôr em comunicação com outras pessoas que partilham connosco os mesmos interesses. Sem a comunicação, a Lomo não seria a Lomo, seria outra coisa.
Esta marca não é apenas, como qualquer outra, uma relação com os consumidores, esta marca é uma conspiração de consumidores organizados em torno dela. Os consumidores relacionam-se uns com os outros e, através dessas relações, relacionam-se com a marca. A relevância da Lomo é, pois, o seu potencial para suscitar iniciativas mobilizadoras.
É isto o verdadeiro Marketing Relacional, demasiadas vezes confundido com programas de incentivos de continuidade que se caracterizam precisamente pelo facto de promoverem um elo puramente interesseiro entre os consumidores e a marca. A insistência cega nesse tipo de programas, fáceis de criar e fáceis de imitar, conduz inevitavelmente as marcas à decadência.
Até que ponto é a Lomografia um exemplo genericamente relevante para o marketing dos nossos dias? Vivemos numa época em que, para terem êxito, os produtos têm que ser geridos como serviços. Ora um serviço não é uma coisa, é um relacionamento cuja avaliação positiva depende mais do processo do que do resultado final obtido (em si mesmo trivial porque indiferenciado).
Precisamos então de novas formas de comunicação de marketing integradas no processo de prestação do serviço, não de campanhas de publicidade marginais, supérfluas e intrusivas. Os consumidores têm já hoje o poder de controlar o fluxo de informação que lhes é dirigido, o que implica o poder de se recusarem a dar-nos ouvidos. É essa a causa profunda da redução do impacto relativo dos mass media.
A boa notícia é que, em consequência destas transformações, alarga-se o âmbito do trabalho criativo, mas também o grau de exigência a que diariamente é sujeito. Não se trata já apenas de fazer campanhas, mas de montar operações de comunicação complexas a favor das marcas. Mais do que nunca, trata-se de construir soluções por medida para situações singulares, construindo de passagem os media mais adequados a cada caso: self made media, portanto.
Lisboa, 15 de Julho de 2004
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