26.2.04

A língua a quem a trabalha

Acreditem: não deve haver sujeito menos patrioteiro do que eu, principalmente quando o que está em causa é um mero spot publicitário.

Apesar disso, também eu me sinto crescentemente irritado com a falta de bom-senso daqueles anunciantes multinacionais que, por preguiça ou forretice, não se dão ao trabalho de traduzirem as suas campanhas, ou que, quando o fazem, revelam um supremo desdém pelos indígenas.

Entre os primeiros contam-se aqueles que optam por claims do género «How are you?» ou «The Power of Dreams».

(Notem que eu não sou fundamentalista. Entendo, por exemplo, que coisas como «Made by Grundig» ou mesmo «Cuore Sportivo» fazem mais sentido, respectivamente, em inglês e italiano.)

Quanto aos segundos, estou a pensar fundamentalmente naquelas disparatadas dobragens em espanholês dos spots da Evax.

Agora, uma das mais surpreendentes não-traduções dos últimos anos é a do novo claim da McDonald’s («I’m loving it»), sob o pretexto, segundo li, de que não é possível traduzir adequadamente a frasezinha para português.

Pelos vistos os brasileiros não estão de acordo, e escolheram, muito simples e naturalmente, «Estou adorando». O que prova mais uma vez que, hoje, os verdadeiros donos da língua são eles, dado que nós somos demasiado saloios para investir nela e que os galegos, seus inventores, a trocaram nas últimas quatro décadas por uma versão manhosa do castelhano.

18.2.04

As coisas que eu não sei

Porque será que todos achamos normais aqueles papéis colados nos carros em que se diz "Contacte", "Procuro Novo Dono" e outras chalaças, quando até os parquímetros sabem que o que querem dizer é "Vende-se"?

Porque será que os candidatos a copywriter, director de arte, director de contas ou director financeiro nunca se esquecem de pôr no curriculum vitae que têm "carta de condução de ligeiros"?

Porque será que nove entre dez anunciantes continuam a garantir às suas agência, contra todas as evidências, que o pronome "você" não se usa em Portugal?

E você, quais são as coisas que não sabe?

15.2.04

Status



Este é o casamento do rico banqueiro italiano Michele Arnolfini, estabelecido em Brugges (cidade à época integrada no ducado da Borgonha, uma das grandes potências europeias do século XV), com uma moça atraente mas de fracas posses. O facto de o noivo estender à noiva a sua mão esquerda, em vez da direita, indica que se trata de um casamento morganástico. Caso ficasse viúva, a esposa não herdaria os bens do falecido, embora tivesse direito a uma compensação.

Não, a rapariga não está grávida: na época usavam-se estas vestes que comprimiam o peito e dilatavam o ventre. O matrimónio celebrava-se dentro de casa, não na igreja, e não era necessário um padre para abençoá-lo. Só depois do concílio de Trento se alterarm esses costumes.

As noivas também não trajavam de branco. O luxo de mandar fazer fatiotas especialmente para usar uma só vez -- vendo bem as coisas, uma ideia completamente demente, mesmo para gente de posses, e uma forma de ostentação que a Igreja deveria activamente condenar -- apenas surgiu muito mais tarde. Quanto à ideia de pôr as noivas a trajar de branco, está bom de ver que teve inspiração romântica. Não entrou nos hábitos antes da segunda metade do século XIX.

A cerimónia, realizada em 1434, tem lugar no quarto de dormir, visto que nem os ricos burgueses tinham uma sala de estar: era ali mesmo, portanto, que recebiam as visitas.

O quadro está repleto de símbolos de riqueza: o vestuário luxuoso dos noivos, a grande cama de dossel, as janelas envidraçadas, o enorme candelabro, o assento de madeira coberto de almofadas, o espelho de vidro convexo na parede do fundo, as laranjas sobre o baú e o parapeito da janela. Hoje em dia, só as peles que debruam a capa do homem caberiam nessa categoria.

Mas o maior símbolo de status é o próprio quadro que representa o evento, porque contratar um pintor como Jan van Eyck, usualmente ao serviço do próprio Duque da Borgonha, Filipe o Bom, custava uma nota preta e não era coisa para qualquer um.
Nos dias de hoje, chama-se a Caras e assegura-se a publicidade adequada de um matrimónio com aspirações a acontecimento social. É claro que o impacto não é tão poderoso, é claro que ninguém vai falar dos retratos daqui a cinco séculos, mas esse é o preço de a fama estar, embora em doses moderadas e por tempo escasso, ao alcance de qualquer um.

A coisa mais importante na pintura é a assinatura do autor, tal como o mais importante de certas marcas de roupa é a possibilidade de ostentar de forma bem visível o seu logotipo. Profundo conhecedor dos gostos e preferências deste segmento do mercado, Jan van Eyck chapou o seu nome mesmo no meio da obra. Assim:


14.2.04

Qual é a marca qual é ela

Um "visitante assíduo" pergunta-me por e-mail qual a marca de que falava no "As seen on TV", e por que razão não a tinha mencionado. Era, como referi, uma marca de que nunca tinha ouvido falar, e depois continuei a não recordar o nome. Mas, como é a pedido de várias famílias, voltei ao café e agora já sei: são os Phoskitos. Se calhar é uma marca famosíssima que investe horrores na TV. Mas eu de facto nunca a tinha visto mais gorda.

12.2.04

AS SEEN ON TV

"Anunciado na TV!" Antigamente um aviso assim era normal nos anúncios de imprensa. Hoje, julgo que ainda se usa na venda por catálogo -- mas em geral saiu de moda. Há uns dias dei por ele num café, numa daquelas caixas que de chocolates, rebuçados, ou lá o que era, que depois de abertas se transformam em displays.

Fiquei a pensar no que tinha levado o anunciante a pôr ali o aviso. Era uma marca de que nunca tinha ouvido falar, e naturalmente nunca vi o tal anúncio na TV. Claro que isso não quer dizer nada -- mas o mais provável é que fosse uma marca com pouco dinheiro para investir a sério na televisão. Então, passou o seu anúncio um bocadinho, e pronto: já podia dizer que era anunciado na TV. E o simples facto de dizer isso, terá pensado o gestor de marketing, já conferia à sua marca uma outra credibilidade. Não era preciso ver o anúncio -- bastava o consumidor saber que ele tinha passado, para concluir que aquela era uma marca da 1ª liga.

Da próxima vez que ler mais uma daquelas entrevistas em que se declara que, com a pulverização dos canais e das audiências, o definitivo declínio da TV e dos mass media é já para amanhã à tarde, vou fazer por me lembrar dessa esforçada marca de rebuçados. A inexorável migração para meios mais dirigidos e eficientes tem a racionalidade do seu lado -- mas a velocidade com que se prevê que aconteça tem sempre que levar em conta estes aspectos irracionais tanto do consumidor como do anunciante. Por muito menos que vá sendo vista, a prazo, a TV tem um trunfo que para um POS promocional, um mailing, um e-mail ou um banner na internet será sempre muito mais difícil de conquistar. Chama-se aura -- e por muito tempo ainda teremos que contar com ela.

10.2.04

Pura ou com limão?

De vez em quando, muito de vez em quando, acontece: uma campanha que, por mais que a gente já a tenha visto e entendido, continua a ser um encontro agradável cada vez que voltamos a esbarrar nela.

No meu caso, a campanha recente que tem tido esse efeito é a da Vidago Limão. Simples, bonito e bem feito. O benefício está lá todo, não explicado, mas realmente traduzido numa imagem que se conserva fresca mesmo depois de muito vista. E a marca salta logo à primeira.

É verdade que, embora gostando tanto da campanha, e sendo um inveterado bebedor de Vidagos, Pedras e Campilhos, ainda não me lembrei de pedir uma Vidago Limão. Mas isso são outros quinhentos.

9.2.04

As Finanças lavam mais branco

No seu livro "A Voz das Empresas", Ricardo Miranda atribui a proverbial ineficiência dos serviços públicos à falta de um espírito de concorrência como o que existe entre as marcas.

É bem provável que seja assim. E se é assim, porque não passar da simples constatação do problema à sua correcção? Marcas nos serviços públicos, já.

Por exemplo: se eu moro em Oeiras, quero passar a ter a escolha entre o Serviço de Finanças de Oeiras 1, pertencente à rede FastTaxes, e o de Oeiras 2, da cadeia ImposTotal. Seria inteiramente livre de tratar dos meus impostos onde fosse melhor atendido – ou na cadeia de que gostasse mais. A FastTaxes, por exemplo, mesmo sendo um pouquinho mais trapalhona no processamento das declarações, teria funcionários mais simpáticos e uma publicidade muito mais gira. O seu slogan, "IRS, YES, YES", seria conhecido até pelos miúdos da pré-primária. Já a ImposTotal ("Ora viva, vou pagar o meu IVA!"), apesar da imagem de sobriedade e experiência, seria vista como demasiado formal e função pública. Mas a cada um o seu gosto: em última instância, o contribuinte sempre tem razão.

Claro que o salário e prémios dos funcionários e gestores seriam indexados à maior ou menor afluência de clientes. O que não significaria aumentar a massa salarial: o que se paga aos responsáveis pela marca mais bem sucedida é o que se deixa de pagar aos concorrentes. A mesma coisa se passaria com hospitais, escolas, notários, polícia e serviços de imigração.

Assim de repente, não vejo porque não seria uma boa ideia. Ou melhor, vejo: ia levantar uma grita danada. E, tendo em conta a resistência que o Estado tem em quebrar monopólios, mesmo quando se trata de empresas teoricamente privadas como a PT, querer que ele faça isso nos seus próprios serviços… OK, foi um delírio. Podem esquecer tudo o que propus acima.

6.2.04

A roupa a falar

Quando um tipo usa botões de punho, isso quer dizer que não está disponível para arregaçar as mangas.

Quando uma senhora calça sapatos de tacão com bicos ponteagudos, está a explicar-nos que não tenciona correr para apanhar o autocarro.

São as diferenças a comunicar.

5.2.04

O sangue das ideias

Não faço a mínima ideia se a BBDO tem ou não razão na sua queixa contra o ICEP.

Mas estou seguro de que é muito importante tornar claro que: a) as agências vendem ideias e não maquetas; b) essas ideias são propriedade intelectual das agências até ao momento em que são pagas.

Extrair ideias de uma campanha criada por uma agência e enxertá-las numa campanha de outra agência é tecnicamente absurdo e eticamente reprovável. Também eu, como quase todos os publicitários, passei por situações dessas.

O trabalho intelectual não é respeitado entre nós. É indispensável corrigirmos essa situação se queremos que o país progrida.

4.2.04

Navio na névoa



Quem não soubesse mais nada sobre comunicação deveria ao menos saber que o que comunica é a diferença.

Quem primeiro o explicou foi, creio, o Saussure, já lá vai um século.

O que isto significa é que não só a identidade das coisas como o seu significado resultam do modo como se contrapoem às restantes.

Sem diferença não há distinção entre a figura e o fundo, que é como quem diz: a mensagem dissolve-se na paisagem, ou, melhor ainda: nem sequer existe.

O nosso entendimento está feito assim. Necessita de contrastes, de confrontos, de demarcações, de oposições.

Uma coisa, uma ideia ou um sentimento só se determinam na sua individualidade na precisa medida em que negam outras coisas, ideias, ou sentimentos.

Pensei nisto ao ver a virtualmente invisível campanha da PT Comunicações construida em torno da frase: «Há um mundo que nos liga».

A mesmice não comunica. O lugar comum não comunica. O estereotipo não comunica.

A frase é completamente vazia, não sabemos exactamente que valor lhe atribuir, admitindo que tenha qualquer valor.

As fotos exprimem emoções requentadas, se é que faz sentido usar a palavra emoções. Os nosso albuns de família contêm dezenas de fotos com mais calor humano do que aquelas.

Não há ali nenhuma surpresa, nenhum story-appeal, nada que nos incite a parar e conceder-lhe um instante que seja de fugidia atenção, quanto mais guardá-la na memória e comentá-la com alguém.

Em resumo: é um navio que passa silencioso e desapercebido no meio do nevoeiro


Para inglês ver

Retomando o tema levantado pelo «Primeiro-Ministro», é uma ingenuidade acreditar que a comunicação tem a possibilidade de, por si só, transformar radicalmente o posicionamento de uma marca.

O que a publicidade pode fazer -- e já não é pouco -- é reforçar e precisar o posicionamento, focalizando as percepções dos consumidores em certos aspectos que eles já reconhecem, mas que não se encontram suficientemente explicitados.

Trata-se, fundamentalmente, de um problema de saliência. A publicidade é um bocado como pôr uma coisa numa montra: as pessoas reparam mais naquilo que se coloca à sua frente, naquilo que lhes é apresentado como digno de atenção, sobretudo se isso for feito com inteligência e bom gosto.

Concretizando em relação ao problema da percepção que os estrangeiros têm sobre Portugal, é um facto que ela assenta muito em certos esteorotipos que consideramos injustos e que, por isso, nos desagradam. Mas, se quisermos ser justos e objectivos, teremos que reconhecer que eles não andam muito longe da verdade. Talvez estejam um pouco desfasados em relação à realidade -- mas não muito.

Nós achamos que evoluimos muito como país nos últimos trinta anos, e eu concordo. Mas, quando encarados sobretudo numa perspectiva de comparação com os outros povos, a evolução é mínima.

Acham que a ideia que hoje temos dos italianos é muito diferente da que os nossos antepassados tinham há quatrocentos anos? Desenganem-se. O mesmo, aliás, poderia ser dito em relação aos espanhóis, aos ingleses ou aos alemães. Não duvidem de que as percepções exteriores de Portugal e dos portugueses também se transformam muito lentamente.

Aliás, notem que uma das coisas que nos caracterizam duradouramente perante os estrangeiros é exactamente a preocupação de fazermos boa figura perante os estrangeiros. «Para inglês ver» é uma expressão deliciosa sem correspondência, que eu saiba, em qualquer outra língua.

Ora publicidade «para inglês ver» é o que o ICEP parece estar obcecado em fazer. No entanto, como não tem dinheiro para comprar espaço lá fora, acabamos por ser nós a ver a publicidade que seria destinada aos «ingleses». Para ficarmos convencidos de que os «ingleses» nos estão a ver. Mas não estão...

Que grande confusão!



Leiam o comentário do «Primeiro-Ministro» ao meu post anterior. Estou inteiramente de acordo com ele.

3.2.04

Segundo o Público de hoje, houve uma corrida às consultas de cardiologia após a morte de Fehér.

Ainda dizem que a publicidade não funciona.