Ser um brasileiro há muito tempo em Portugal dá-me a escolha entre o olhar do aculturado e o do estrangeiro.
Nesta celeuma do Expresso e do Sol, é o meu olho estrangeiro que não pára de se espantar. Programas de televisão, polémicas na rádio e em blogs, conversa acalorada nos cafés. Nunca pensei que o lançamento de um semanário e a oferta de uns DVDs pelo concorrente desse para tanto. Por aqui, a série de posts do João sobre o tema provocou, nos modestos parâmetros deste blog, um record de audiência.
Digo que é o meu olho estrangeiro que se espanta porque nunca me habituei realmente a esta coisa totalmente portuguesa do semanário. Desde a adolescência fui educado para ler jornais (que saem todos os dias) ou revistas (que saem uma vez por semana). Quando cheguei a Portugal ainda não havia o Público, o Diário de Notícias era perfeitamente ilegível e não havia revistas de informação. Mas havia o Semanário, o Independente tinha acabado de aparecer e, lá no alto do seu Olimpo, o Expresso.
A consequência disso foi que, durante um ano e tal, até o surgimento do Público, embora até gostasse do Independente daquele tempo, senti-me órfão em matéria de informação. “Órfão” não é exagero. Como toda esta polémica mostra, os jornais são provavelmente a categoria, a par dos cigarros, em que o hábito tem mais força. Mas não é um hábito anódino. É um verdadeiro ritual que nos estrutura a vida, a sociabilidade e o sentido de pertença. Tem qualquer coisa de religioso, como ser adepto de um clube de futebol. Por isso o desafio ao Expresso, ao qual eu, por exemplo, permaneci estrangeiro, deu origem entre adeptos e não-adeptos a reacções tão emocionais – incluindo a do próprio Expresso, como o João já demonstrou. A intenção declarada de desalojar um traço de identidade tão sagrado da classe média portuguesa equivale a um golpe de estado.
No Público de ontem vinha uma crónica do Eduardo Prado Coelho intitulada “Expresso”. Mas não falava do Expresso: autobiografava o autor enquanto leitor do Expresso. Quando e onde começou a ler, com quem o foi lendo ao longo da vida, sentado no chão em Paris ou no café com a mulher e os amigos. Até a torturada questão de saber se o jornal é “de direita” ou “de esquerda” – ou seja, a que tribo implicitamente me filio quando o leio –, que, para mim, ainda estrangeiro nesse aspecto, está sujeita a subtilezas locais de interpretação que até hoje não domino totalmente, mostra a que ponto o ritual do jornal tem associações viscerais.
Se alguma coisa o Sol fez bem, foi cavalgar esse hábito tão enraizado do semanário e disputar um lugar ao lado do Expresso. Mas, por muitos erros de marketing que o concorrente cometa, reconstruir uma ligação emocional tão funda como a do Expresso com os seus adeptos não será propriamente fácil.
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Há 4 anos
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