16.12.03

O MARKETING TRAMOU O PAI NATAL?

Todos os Dezembros é a mesma cantiga: "O Natal não é mais o mesmo". "O espírito de Natal já não existe". "O comércio matou o Natal".

É compreensível. Bombardeada por jingle bells e pais natais em cada supermercado, pelo apelo implacável ao nosso consumismo, não há mística que se aguente. Para muita gente, é bem possível que a alegria de festejar, de repartir, já tenha sido substituída por um mecânico intercâmbio de compras: eu dou-lhe um CD, você dá-me um livro, estamos quites. Consumimos brinquedos, electrodomésticos, calorias e já está: para o ano há mais.

Até para as crianças acreditar é cada vez mais difícil. Como conciliar mistério e surpresa com uma lógica comercial que exige que vão elas próprias escolher na loja os brinquedos que viram na TV?

A tradição já não é o que era. Vai daí, fica a pergunta: alguma vez foi?

Todos nós temos uma ideia idílica dos "velhos tempos" – aqueles em que nada mudava e tudo estava mais próximo da sua verdadeira essência. Neste caso, esse tempo coincide com a nossa infância – aí, sim, o Natal era o Natal. O que raramente notamos é que, já então, os nossos pais viam as Festas como uma degenerescência. Para eles, o Natal dos seus filhos já nada tinha a ver com o verdadeiro – o da infância deles, é claro.

E a verdade é que não tinha mesmo. Objectivamente, o Natal mudou muito nas últimas décadas. De geração para geração mudaram costumes, símbolos e muito do famoso "espírito". O marketing obviamente teve tudo a ver com isso. Mas, por muito que o acusem, a sua maior contribuição não foi destruir rituais e mitos. Pelo contrário.

Tem dúvidas? Então pense naquele velhinho gorducho, de barrete vermelho e orlas brancas, a deslizar no seu trenó. O que seria do Natal sem ele, não é? Pois se não fosse o marketing, nem você, nem os seus pais, nem os seus filhos, jamais teriam ouvido falar dele.

A origem do Pai Natal é conhecida: do lendário São Nicolau foi pouco a pouco derivando por todo o lado a figura do velhinho distribuidor de prendas. Mas, tal como o conhecemos, ele só ganhou forma no início do século 19, quando o poema "An Account of a Visit from Saint Nicholas" popularizou na América a imagem do elfo bonacheirão, a precisar de dieta e com um fraquinho por chaminés. Se hoje o mundo inteiro o conhece assim, é porque ele logo se revelou para o comércio um verdadeiro presente de Natal.

Já há 200 anos o hábito de dar prendas na época das Festas tinha despertado o sentido de oportunidade dos comerciantes americanos. Em 1820 as lojas já faziam promoções especiais, e em 1840 havia secções nos jornais só para os anúncios ligados à quadra. O Pai Natal era a estrela de muitos desses anúncios – o que o tornou ainda mais popular. Em 1841, milhares de crianças acorriam a uma loja de Filadélfia para ver um Pai Natal "vivo". A moda dos Pais Natais de shopping, que nos parece tão recente, teve início há exactos 163 anos.

Visualmente, o Pai Natal ganhou a figura que lhe conhecemos em 1881, graças ao marketing da revista Harper’s Weekly. A ilustração de Thomas Nast para a capa fez tanto sucesso que voltou a ser publicada por vários anos seguidos. Foi aí que o Pai Natal ganhou o seu fato vermelho, a oficina no Pólo Norte e os anõezinhos.

O empurrão que faltava veio da publicidade da Coca-Cola, que a partir de 1931 globalizou um fenómeno até então principalmente americano. Em todo o planeta o velhinho torna-se sinónimo de Natal – e acreditar nele, o sinal característico da infância.

Como se vê, o marketing ajudou a dar ao mundo um belo ritual, uma mitologia cheia de significado. Um significado tão importante que até protestamos ao sentir que ele se está a perder. E o Natal não é caso único. O que seria das grandes celebrações desportivas sem as marcas que as apoiam e que se apoiam nelas? O que seria de rituais como o dia da mãe ou o S. Valentim, que de forma menos espectacular mas não menos importante ajudam a estruturar as nossas relações familiares e sociais?

O que certamente custa a aceitar, nessa forma de ver a interferência do marketing nas nossas tradições, é que nela se misturam espiritualidade e comércio, inocência e astúcia, espírito de Natal e espírito de iniciativa. Coisas que talvez gostássemos de imaginar hermeticamente separadas. Mas que, como a história do Natal demonstra, se misturam todos os dias.

E isso será bom ou mau? Para já, é a realidade – não há muito a fazer. Mas talvez possamos dizer que é mau quando a esperteza dos negócios nos leva a ver as tradições como um simples meio, um pretexto a mais para fazer barulho e chamar a atenção. Sempre que nós, publicitários e marqueteiros, fizermos assim a campanha, a promoção, o cartão de Natal da nossa marca, o tal espírito estará a morrer pelas nossas mãos. E, provavelmente, também estaremos a fazer mau marketing.

Felizmente, também se dá o contrário. Como o Pai Natal da Harper’s Weekly ou da Coca-Cola, pode ser que a nossa campanha capture como ninguém o que a festa tem de humano e verdadeiro. Quando isso acontece, não é o marketing que toma conta da festa – mas o inverso: com a ajuda de uma ideia feliz, voltamos a perceber o que significa um Feliz Natal.


(publicado inicialmente em www.theideafiles.com, em Dezembro de 2002)



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