Cena um.
Na introdução ao seu Relato de um Náufrago, Gabriel Garcia Márquez narra como o livro nasceu. Jornalista de vinte e poucos anos, foi procurado pelo tal náufrago que protagoniza a história, e que já se tinha tornado famoso com os anúncios feitos depois da aventura. Fizera um anúncio a um relógio, porque o seu não parara de trabalhar após vários dias no mar. Um anúncio ao sapato que levava, tão resistente que não o tinha conseguido comer. E muitas outras "porcarias da publicidade", segundo o romancista.
Achei graça ao ler isto porque a minha agência, há dois ou três anos, propôs uma dessas "porcarias" a um cliente. Durante alguns dias os jornais tinham falado de um windsurfista que se perdera no mar. Quando acabou por ser resgatado, narrou aos jornalistas como ficara angustiado por ver, lá longe, os helicópteros que andavam à sua procura, sem os poder avisar que estava ali. Nessa altura tínhamos um cliente que produzia telemóveis, e estava a lançar um desses modelos que resistem à água e às pancadas. Propusemo-lhe então um anúncio em que o nosso náufrago (que entretanto contactámos) contava a sua aventura, e lamentava não estar equipado com um daqueles.
O cliente, que a princípio adorou o anúncio, acabou por não o fazer – o que foi pena. O anúncio era uma boa oportunidade para a marca, mas acima de tudo era totalmente relevante para o consumidor. Comunicava um benefício verdadeiro e útil, fantasticamente ilustrado por aquele acontecimento inesperado e actualíssmo. Mas desconfio que se García Márquez o visse continuaria a chamá-lo da mesma forma: uma dessas "porcarias da publicidade".
Cena 2.
O filho de seis anos, que ainda não percebeu muito bem o que o pai faz para viver, dispara: "Pai, tudo o que os anúncios dizem é mentira, não é"?
O pai publicitário engasga. Por um lado, não quer ser visto pelo próprio filho como um vigarista profissional. Por outro, percebe perfeitamente o ponto de vista da criança, e nem lhe desagrada que ela comece a afiar um espírito crítico que lhe permita não querer tudo o que os anúncios vendem.
Entre uma ponderação e outra, a resposta do pai sai parecidíssima com as explicações do governo para o perdão ao défice franco-alemão.
OK, Garcia Marquez alinha com Cuba. OK, uma criança é uma criança, ainda não sabe distinguir com subtileza uma mentira deslavada de uma "truth well told" – aquela verdade um tanto tendenciosa, um nadinha exagerada, só um bocadinho enfeitada, que dá pelo nome de publicidade. Seja como for, ambos apenas dão voz ao senso comum. "Aquelas porcarias da publicidade" são, para a maior parte das pessoas normais, na maior parte das situações normais, um simples sinónimo de "publicidade". (As pessoas normais são as que nunca frequentarão blogues sobre publicidade).
Não estou dizendo nada de novo, eu sei, mas achei que vinha a propósito desta discussão sobre os saberes de agências e anunciantes. Há muitas coisas que eu sei que as agências não sabem e deviam saber. Mas se há algo que pelo menos as melhores delas costumam saber melhor do que os anunciantes, é isso: que a publicidade, na visão comum das pessoas comuns, é "uma porcaria", um amontoado de mentiras. Boa publicidade, publicidade verdadeira, é a que consegue superar esse pré-julgamento inicial e invertê-lo, tornando-se na excepção que sempre vai confirmar a regra. As agências estão bem mais preparadas para conseguir isso do que os anunciantes sem a sua ajuda.
Pelo menos até onde eu sei.
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Há 4 anos
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